sábado, 19 de fevereiro de 2011

Encontro de fumaça



Vinha num daqueles dias ordinários, ocupada, apressada. Dos mais comuns possíveis. Repetia caminhos diários; os pés já percorrendo sozinhos cada trecho da calçada, pisando concentrada nos quadradinhos do calçamento. Descabelada, despreocupada, completamente absorta, faminta. Dizem que os encontros só acontecem quando se está completamente despreparado, não?

Piscou um olho e lá estava ele, igualmente perdido em seus pensamentos. Na verdade, cercado por eles. A fumaça do cigarro que tragava cercava-lhe a cabeça como se fossem suas próprias divagações materializadas. - Sempre pensei que se pensamentos tivessem alguma forma, seriam como fumaça de cigarros a se desprender de nossas cabeças.  
Antes que pudesse discernir qualquer coisa, ele vinha; imerso em sua fumaça, caminhando na mesma calçada em sua direção. E ela lentamente reconhecia-o sem saber o que dizer, o que fazer, sem ao menos ter certeza de que era mesmo ele.

O que se diz num encontro fortuito com alguém a quem já se disse tanto? Como reagir quando encontramos, assim, alguém cuja existência treinamos por tanto tempo para ignorar?
                    
Estava distraído e quando viu, ela já o encarava da direção contrária. De tão absorto com problemas e cigarro, a percebeu já muito perto, quando a fuga de olhares já não era mais possível. Vinha em sua direção usando roupa de trabalho; quase executiva, comum. Nunca a havia imaginado naquele tipo de roupa, ela nunca fora comum. Percebeu que não passava de um disfarce; exigência da casa, emprego-padrão, talvez. 
Ela olhava, ele olhava. Não fosse a correspondência de olhares, podia se convencer de que era apenas uma impressão; alguém levemente parecido, semelhante. Mas não, era ela. Reconheceu as covinhas no rosto, o ar sonhador e a dúvida insegura, o jeito tímido de olhar pro lado. Estava mais bonita; um quê de mulher que não havia antes, óculos novos. De repente sentiu vergonha do cigarro, reclamavam juntos de cigarros e fumantes, naquela época.


A velocidade dos passos tornava cada vez menor a distância entre os dois corpos, inevitável um desconcertante ‘olá’. Talvez até um ‘como você está?’ carregado de estranhamento. Chegavam mais perto; ela abriu a bolsa, ele pegou outro cigarro. Ela fingiu procurar as chaves perdidas, ele se perdeu no manuseio do isqueiro, sucção do cigarro recém-aceso. Baixaram o olhar e assim seguiram; disfarçados, protegidos por um acordo sem palavras. Cada um resistindo mais que o outro à vontade opressora de olhar para trás.

3 comentários:

  1. Em um momento do texto lembrei bastante do filme '500 days of summer'...no finalzinho qdo ela o espera no lugar que ele considerava o seu favorito...(rs) Mas Sayô adoro esse jeito detalhista e intenso que tu escreve, fonte de inspiração. Bom passar por aqui! Beijos ;)

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  2. Sayo, mudei o endereço do blog.
    =) http://mariintheskywithdiamonds.blogspot.com/

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