quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Placas



Em cada olhar e em tantos dos teus sorrisos, uma placa de retorno. E na tua frente eu, que sempre hesito mas preciso seguir adiante; suspeito que as placas estão ali pra me ludibriar e na verdade escondem o segredo maior,  âmago do teu mistério. 


Logo tu, que ao primeiro olhar é tão fácil de ler, me assusta. Não sei o que vou encontrar, e temo que seja bom. Talvez eu não saiba mais lidar com o que é bom e simples, e de alguma forma acabe quebrando toda a paz e aventura que me prometes a cada vez que me olha. Medo de ter me tornado uma espécie de Midas ao contrário, e que tudo o que toque se degenere rapidamente em minhas mãos.

Mas enquanto não entendo o pavor e a delícia que sinto ao te olhar, percebo que quero descobrir tudo ao teu respeito; quero viver qualquer coisa que nós fizermos acontecer. E quem sabe até lá não subverta as placas, e perca de vez qualquer possibilidade de achar o bendito caminho de volta...

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Leve desespero



Abriu os olhos, e junto veio o sentimento velho conhecido seu: a aflição por todos os objetos estarem fora do lugar; livros no chão, roupas na cama, folhas do caderno oscilando ao sabor do vento. Estava tudo errado, pensou. E mal podia organizar as ideias naquele lugar. Precisava arrumar tudo. Para que coisas boas acontecessem tudo deveria estar arrumado. Mas por onde começar?

Os móveis caídos no chão clamavam por uma intervenção, mas também o faziam os lençóis sujos sobre a cama e os insetos que haviam tornado a cozinha um novo ecossistema. Tudo aquilo que era necessário fazer a esmagava, e ela percebeu que mesmo após a limpeza o desassossego permaneceria; continuaria a subir por suas pernas aquela sensação de que havia algo muito errado. Sentia as panturrilhas geladas, como se uma geléia fosse sendo derramada e subisse pela carne lentamente, retesando todos os músculos.

Continuaria se sentindo perdida e suja mesmo que habitasse um castelo; mesmo que o piso limpíssimo refletisse o brilho de suas pupilas. De fato, pensando assim, se sentia melhor pertencendo a esse casebre sujo e não a um castelo resplandecente; toda a degradação externa abafava o caos que ela sentia por dentro.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Sutil e doce

Manhã cedo, corredor lotado, sentidos dominados pelo sono.

Música alta, conversas sussurradas, gargalhadas, colônia forte jogada sobre os corpos. Sutil, um aroma se destacou entre as notas mais agudas dos perfumes. Sutil e doce… Artificial e doce. As imagens vieram logo, todas juntas e cheias de cor e luz.

Revivi.  Um take fechado de tuas costas nuas, cobertas apenas pelos desenhos inusitados de tintas vivas; as cores do teu universo preenchendo o quarto de paredes brancas. Fechei os olhos e ouvi mais uma vez a música nova que me fazia vibrar como só o fazem as minhas preferidas; nossas conversas e silêncios dominando todos os meus sentidos.

No fim daquela tarde as paredes brancas do teu quarto se tingiram de vermelho e amarelo refletindo teus cabelos e o pôr do sol, e um aroma lilás se destacava entre todos outros. Sutil e doce… Artificial e doce.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Coceira

I got scratches, all over my arms
One for each day, since I fell apart
(Footsteps – Pearl Jam)



Tenho essa insistência irritante com as minhas feridas.

Perturbo cascas, arranho projetos de cicatrizes inconscientemente, movimento automático de dedos e unhas. Quando vi já interrompi mais um processo; mais uma feia marca no rosto.

O que leva ao desassossego é que não compreendo. Como se sentisse falta do incômodo, da adrenalina, do perigo. Envolvo-me em reminiscências que nem fazem parte do meu novo ser, ressuscito temores já sufocados pelo pó, ensaio reinterpretar as dúvidas que fui abandonando tão gradativamente.

Fato é que o palco não é mais meu, a platéia não suporta mais assistir às minhas reprises. E de todos, quem menos acredita nesse papel que desempenho sou eu mesma.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Fecho os olhos para me encontrar



Na substância de que é feita o escuro, me achei. 

Depois de tantos dias sem conseguir me ouvir, cercada por um mundo de cores atordoantes, luzes e vozes, gritos e sussurros, mergulhei por acaso em um ambiente escuro e senti a paz de não mais ouvir às demandas alheias.

A porta aberta revelou escuridão densa e tão real que imaginei que poderia ser tocada; aceitei o convite e estendi meus dedos adiante não por medo dos obstáculos, e sim procurando tocar o tecido preto que me tapava a vista. Mas não havia nada lá além do meu mistério que a escuridão revelava, e a possibilidade de finalmente ouvir aos antigos chamados internos. Cuidado pra não tropeçar no entulho que acumulei em minha cabeça; tranqüilidade para arrumar todo o lugar que estava deserto de mim há tanto tempo.
Quando finalmente desisti de identificar qualquer objeto naquele espaço, quando me conformei com os véus que me tapavam a vista, é que voltei a ver [Ah, como é fácil ver quando abandono essa mania de controle... ]. 

Identifiquei silhuetas desenhadas na fraca luz depois objetos inteiros, faces, pessoas. E o escuro deixou de ser misterioso para se transformar em aconchego e paz. 

Me aninhei, ocupei confortavelmente o espaço de minhas memórias e sentimentos, mastiguei os acontecimentos e só então consegui voltar à orgia de luz, informações, afetos e à mais completa confusão que é a outra vida, aquela que acontece fora de mim.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Quebra-cabeças


Como perceber qual o momento certo, quando nossos olhos quase se cruzam, mas não se reconhecem?



Hoje, antes de dormir, pensei em você. Mas quem era esse você? Será que você existe? Não possuo ainda teu rosto definido em minha mente.
Nunca te vi, mas adivinho o som da tua risada e o tom animado e um pouco sério com que fala o meu nome. Senti o teu olhar tímido e íntimo sobre mim na primeira vez em que me chamou de menina, no tom delicado que as palavras  deixavam te entrever.

Te encontrei, hoje? Não sei. Se não te conheço, como  quase pude ver teus cabelos ondulando enquanto você corria em direção oposta à minha, saindo enquanto eu chegava? Paralisei por dois segundos e te senti ali, ainda restava o mistério da tua presença.
E essa impressão de que te conheço; mesmo não sabendo direito como se passam teus dias, qual o nome do teu primeiro amor ou o que te leva exatamente a sorrir e a chorar, quando você me conta que tais coisas aconteceram. Sinto que te conheço porque às vezes, apesar de as palavras serem a única coisa que temos, nos comunicamos para além delas.

De repente analiso cada estranho com uma dedicação obsessiva: olhos, bocas, sorrisos e cabelos, comparando-os à tua imagem guardada em minha cabeça. A cada um que não é você me vem como que um alívio: - eles são reais.

terça-feira, 8 de março de 2011

Na chuva, na fazenda...

Foto de Gustavo Barreto.

Tem coisa mais gostosa que chuva no sertão? Vento aconchegante jogando os primeiros pingos contra o rosto, pés na terra grossa, pedrinhas molhadas que machucam e acariciam... 

O verde de cada árvore se destaca, aceso pela água que desliza. Cheiros exaltados; cheiro de mato, de chão molhado, de flor. Cada detalhe expandido, latente; minha sensibilidade aguçada, aquela preguicinha que vem com a chuva. E a possibilidade que só existe no sertão de sentar em cadeira de balanço no alpendre e balançar, balançar, balançar; se concentrando no cenário tão simples e belo. Os pingos, as gotas, as goteiras... Gotículas que o vento traz e refrescam o rosto com delicadeza de borrifador. 

Quando curto a chuva, me sinto em casa. Saio de dentro de mim pra espiar e volto de novo, fecho os olhos e me analiso com calma. Com aquela certeza de que todas as coisas estão nos seus devidos lugares; prateleiras internas arrumadas. Contentamento tranquilo, sensação de completude.

Se não fizessem tanto escarcéu com a palavrinha ‘felicidade’, eu diria que nesses momentos comigo é que consigo ser plenamente feliz.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Encontro de fumaça



Vinha num daqueles dias ordinários, ocupada, apressada. Dos mais comuns possíveis. Repetia caminhos diários; os pés já percorrendo sozinhos cada trecho da calçada, pisando concentrada nos quadradinhos do calçamento. Descabelada, despreocupada, completamente absorta, faminta. Dizem que os encontros só acontecem quando se está completamente despreparado, não?

Piscou um olho e lá estava ele, igualmente perdido em seus pensamentos. Na verdade, cercado por eles. A fumaça do cigarro que tragava cercava-lhe a cabeça como se fossem suas próprias divagações materializadas. - Sempre pensei que se pensamentos tivessem alguma forma, seriam como fumaça de cigarros a se desprender de nossas cabeças.  
Antes que pudesse discernir qualquer coisa, ele vinha; imerso em sua fumaça, caminhando na mesma calçada em sua direção. E ela lentamente reconhecia-o sem saber o que dizer, o que fazer, sem ao menos ter certeza de que era mesmo ele.

O que se diz num encontro fortuito com alguém a quem já se disse tanto? Como reagir quando encontramos, assim, alguém cuja existência treinamos por tanto tempo para ignorar?
                    
Estava distraído e quando viu, ela já o encarava da direção contrária. De tão absorto com problemas e cigarro, a percebeu já muito perto, quando a fuga de olhares já não era mais possível. Vinha em sua direção usando roupa de trabalho; quase executiva, comum. Nunca a havia imaginado naquele tipo de roupa, ela nunca fora comum. Percebeu que não passava de um disfarce; exigência da casa, emprego-padrão, talvez. 
Ela olhava, ele olhava. Não fosse a correspondência de olhares, podia se convencer de que era apenas uma impressão; alguém levemente parecido, semelhante. Mas não, era ela. Reconheceu as covinhas no rosto, o ar sonhador e a dúvida insegura, o jeito tímido de olhar pro lado. Estava mais bonita; um quê de mulher que não havia antes, óculos novos. De repente sentiu vergonha do cigarro, reclamavam juntos de cigarros e fumantes, naquela época.


A velocidade dos passos tornava cada vez menor a distância entre os dois corpos, inevitável um desconcertante ‘olá’. Talvez até um ‘como você está?’ carregado de estranhamento. Chegavam mais perto; ela abriu a bolsa, ele pegou outro cigarro. Ela fingiu procurar as chaves perdidas, ele se perdeu no manuseio do isqueiro, sucção do cigarro recém-aceso. Baixaram o olhar e assim seguiram; disfarçados, protegidos por um acordo sem palavras. Cada um resistindo mais que o outro à vontade opressora de olhar para trás.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

As palavras, essas danadas!

Tudo que eu queria dizer
Alguém disse antes de mim
Tudo que eu queria enxergar
Já foi visto por alguém

Nada do que eu sei me diz quem eu sou
Nada do que eu sou de fato sou eu

Tudo que eu queria fazer
Alguém fez antes de mim
Tudo que eu queria inventar
Foi criado por alguém

Nada do que eu sou me diz o que sei
Nada do que eu sei de fato é meu
(Pra manter ou mudar, Móveis Coloniais de Acaju)


Acho que todo mundo já sentiu que poderia MESMO ter feito ou dito antes algo que outra pessoa fez ou disse. Seja escrever um texto, uma letra de música ou até elaborar certas teorias científicas (sim, eu sou arrogante às vezes!). Além dos motivos usuais de inveja branca da genialidade dos outros, ainda fiquei indignada porque os caras do ‘Móveis’ escreveram a música aí em cima falando exatamente sobre isso, também antes de mim! Mas mesmo assim resolvi fazer o meu próprio texto, esse curtinho aí embaixo (nascido de leituras de Caio Fernando Abreu):

Certas palavras parecem tão minhas que não consigo aceitar que já foram ditas por outra boca, ou outro lápis. Quando as leio, desejo absorvê-las para além do ato de ler, ou de copiar. Sinto necessidade imperativa de me apossar daquelas palavras que – como é possível? – um estranho disse antes de mim e que me explicam melhor do que eu mesma sou capaz. Sou tomada por um ímpeto de comer, engolir o papel, quero me apropriar daquele pensamento de qualquer forma.

Por que livros não alimentam também a carne? Minha tentativa de conquistar as palavras, de domá-las, chega ao absurdo de querer absorvê-las por minhas mucosas. Tenho ganas de engolir meus livros para assim compreendê-los, desnudá-los completamente. E eu que passei uma vida inteira com a mania estranha de devorar folhas de caderno aos pedacinhos, sem entender porque. Percebo agora: era canibalismo como de algumas tribos de índios. Queria engolir o papel impresso ou o autor inteiro? Meu querer com as palavras sempre foi violento.

Já aquelas que nascem em mim e povoam a minha mente são tiranas. Fogem covardemente quando tento alcançá-las, teleportam-se. Estavam aqui há pouco e quando tento pescá-las – pluft! Já sumiram sem deixar rastro. Ciumentas, invejosas. Basta não dar-lhes atenção – procuro o sono – que vêm dançar diante do meu rosto; se mostram seminuas, límpidas, abundantes, se exibem para mim mas não se entregam. Safadas que são. 


Preservam seu mistério para me fazer ceder às suas vontades.


domingo, 6 de fevereiro de 2011

Do lado de dentro

Porque eu já tranquei as portas e escondi as chaves
Só não vi de que lado fiquei – de dentro ou por fora, nem sei.
(Moska)



Não quero mais te assassinar, extirpar violentamente de mim rasgando pedaço a pedaço. Porque a cada pequena distração, aos domingos e nas madrugadas você se esconderá em meus recônditos mais discretos, mais profundos. Pequenos pedaços de você, sementes que aguardam o momento certo de se multiplicar. Sinto de repente selvagerias que nunca imaginei, sonhos de destruição e de implosão. Acabar com tudo, comigo inclusive, só para não te sentir mais. Se torna necessária a destruição, porque é como se esses pequenos pedaços gravados indelevelmente em mim estivessem zombando, mostrando o quanto é impossível te esquecer por muito tempo.

Não é nenhum daqueles ideais românticos de ‘eu não consigo viver sem você’. Claro que consigo viver sem você e até consigo, muitas vezes, te ignorar. Mas sempre acontece alguma coisa pra reviver o você em mim. Algum desastre-da-última-semana e lá vou eu te convencer que a vida vale a pena. E no fim, sinto um daqueles teus pedaços lutando por se regenerar, se reproduzindo e preenchendo todo o espaço que eu havia acabado de limpar, com tanto esforço. E lá se vai a sala vazia e ampla que eu havia construído em mim, almofadas arrumadas esperando novo morador.

Como você não percebe que esse caos instaurado é a minha maior prova de amor? A violência pra te arrancar daqui é porque você não pode estar, não. Se você fica me torno fraca; e a minha força e rebeldia são as últimas coisas que restam de mim nessa história. Tenho ganas de, já que não posso te destruir, te trancar aqui do lado de dentro. Começar fingindo raiva, ou desprezo, ou indiferença para que a realidade me acompanhe mais adiante. O mais estranho é que nos períodos mais graves de tua ocupação você transborda em mim, de dentro pra fora. Se expande no brilho dos meus olhos, no sorriso um tanto quanto louco e desesperado e numa felicidade estranha; você é dor boa de sentir.

Espero o dia cada vez mais próximo, eu sei, em que conseguirei eliminar essa tua presença constante, os tecidos do amor desesperado que se renovam. E não será mais pela força, pela dor e nem pelo desespero. Será pela tranquilidade de pensar em ti e saber que te amo, e vivenciar isso de forma tão plena que o que você pensa ou faz disso não me incomode mais, e que eu possa simplesmente te deixar pra lá.


As gotas são azuis, mas em alguns dias eu vejo tudo vermelho.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Para um dia de chuva

"Lá fora está chovendo,
Mas assim mesmo eu vou correndo
Só pra ver o meu amor."
(Que Maravilha; Toquinho)



O dia amanheceu gelado, difícil sair da cama. Olhos semicerrados, tropecei no cobertor e aterrisei no frio chão do quarto. Não havia tempo para preguiça, a dança do percurso era longa: chuva causa frio, confusão e engarrafamentos, o caos da cidade expresso em notas agudas. Mas em nenhum momento me sentia perdendo tempo, sono ou conforto. Buscava um conforto que não havia em outro lugar.

Olhava atentamente as pedrinhas do calçamento, verde-musgo, cor viva de chuva. Me esquivava das poças, pedia direções, mudava de rumo; andei ruas inteiras em vão, voltei, dobrei, segui adiante e só depois de muitos caminhos me achei. Mas, no momento em que cheguei à tua porta, o cronômetro de viagem estava zerado: a jornada começava ali, ou nem tinha acontecido. Tinha percorrido a cidade inteira só pra chegar ao teu ponto de partida.

Teu rosto sonolento ao abrir a porta, o medo que os olhos tem da claridade cegante desses dias nublados. Tudo pura maldade. Corro pra não te despertar por completo, e mais adiante um beijo. Um beijo de sono, de sonho, porque você ainda dormia por inteiro, e eu ia me contagiando novamente por aquele estado de torpor; acertando meus ponteiros com os teus, que nem tinham começado a rodar ainda.

De volta às cobertas é que você se revela para mim. Os olhos que não se abriram por completo agora totalmente cerrados; os vincos do lençol imprimindo na pele do rosto rugas que ainda não possui e os braços pendendo frouxamente em minha direção, procurando ainda, zumbis de um corpo adormecido. E eu vou chegando suavemente, encostando meu corpo devagar para não causar susto, e aos poucos misturo o frio vivo do mundo lá fora ao calor que é só teu.